12 junho, 2015

Muito mais grave

Lagoa da Conceição. Foto by Claudia Félix.

Todas as parcelas de minha vida têm algo teu
e isso na verdade não é nada de extraordinário
tu o sabes tão objetivamente como eu

no entanto há algo que gostaria de esclarecer-te
quando digo todas as parcelas

não me refiro só a isto de agora
a isto de esperar-te e aleluia encontrar-te
e caramba de perder-te
e voltar a encontrar
e oxalá nada mais

não me refiro só a que de pronto digas
vou chorar
e eu com um discreto nó na garganta
bom, chora
e que um lindo aguaceiro invisível nos ampare
e quem sabe por isto saia em seguida o sol

nem me refiro só a que dia após dia
aumente o estoque das nossas pequenas
e decisivas cumplicidades
ou que eu possa     ou crer que posso
converter os meus reveses em vitórias
ou me faças o terno presente
do teu mais recente desespero

não
a coisa é muitíssimo mais grave

quando digo todas as parcelas
quero dizer que além desse doce cataclisma
também estás a reescrevendo minha infância
essa idade em que dizemos coisas adultas e solenes
e os solenes adultos as celebram
e tu ao contrário sabes que isso não serve
quero dizer que estás rearmando minha adolescência
esse tempo em que fui um velho carregado de receios
e tu sabes em troca extrair desse deserto
o meu gérmen de alegria         e presenteá-lo olhando-o

quero dizer que estás sacudindo minha juventude
esse cântaro que ninguém nunca pegou em suas mãos
essa sombra que ninguém aproximou da sua sombra
e tu em troca sabes estremecê-la
até que comecem a cair as folhas secas
e fique a armação da minha verdade sem proezas

quero dizer que estás abraçando minha maturidade
esta mistura de estupor e experiência
este estranho confim de angústia e neve
esta vela que ilumina a morte
este precipício da pobre vida

como vês é mais grave
muitíssimo mais grave
porque com estas ou com outras palavras
quero dizer que não és tão só
a querida menina que és
mas também as esplêndidas
ou cautelosas mulheres
que quis ou quero

Porque graças a ti tenho descoberto
(dirás já era hora             e com razão)
que o amor é uma baía linda e generosa
que se ilumina e se escurece
segundo venha a vida

uma baía onde os barcos
chegam e se vão

chegam com os pássaros e augúrios
e se vão com sirenes e nuvens carregadas
uma baía linda e generosa
onde os barcos chegam
            e se vão
Mas tu
por favor
               não te vás.



Mario Benedetti

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