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21 junho, 2023

Veneza, da janela de Sartre

"A água está demasiado calma; não a ouvimos. Tomados por uma certa suspeita, eu me debruço: o céu caiu ali dentro. Ela mal ousa se mover e suas milhares de dobras embalam confusamente a enfadonha Relíquia que fulgura por intermitências. Ao longe, a leste, o canal se interrompe, é o começo da grande poça leitosa que se estende até a Chioggia: mas daquele lado, é a água que está de saída: meu olhar desliza para uma vidraça, resvala e vai se perder, tendo em vista o Lido, em uma morna incandescência. Faz frio; um dia nulo anuncia seu palor; mais uma vez Veneza se toma por Amsterdã; aquelas pálidas formas acinzentadas ao longe são palácios. É assim, aqui: o ar, a água, o fogo e a pedra não param de se inverter, de trocar suas naturezas ou seus lugares naturais, de brincar de quatro cantos ou de pega-pega; jogos antigos e sem inocência; assistimos ao treino de um ilusionista. (...)" 


Jean-Paul Sartre em "O sequestrado de Veneza" 



assim vai, livro afora . . . nem de copiar tenho vontade de parar... Trata-se de um ensaio sobre o pintor veneziano Tintoretto, não descrevendo sua obra, mas partindo da trajetória do pintor, Sartre retrata a tragédia da arte moderna.  
Não escrevo mais sobre esta primorosa crônica, para que assim  possas ler e saborear as linhas belíssimas no próprio livro, recomendo. 

E hoje Sartre faria aniversário ... Quis escrever-lhes algo novo sobre ele, dames, mesdames et messieurs: tarefa difícil esta. Lendo este trecho, vejo da minha janela apenas prédios de péssima arquitetura, mas há esta chuvinha charmosa e o início do inverno com suas promessas de cafés e chás e bate-papos. Daqui de minha escrivaninha sonho um dia olharmos por alguma janela em Veneza, com os olhos de Sartre.
Estes olhos que mudaram o mundo...

por Claudia Félix
(Escrito inicialmente em 21 de Junho de 2011, reescrito em Junho de 2023)
Imagem: Foto de um tapete que meu pai trouxe de Veneza, em 1959.

16 novembro, 2011

escolher-se




Para a realidade humana, ser é escolher-se: nada lhe vem de fora, nem tão-pouco de dentro, que possa receber ou aceitar. Está inteiramente abandonada, sem auxílio de nenhuma espécie, à insustentável necessidade de se fazer ser até ao mais ínfimo pormenor. Assim, a liberdade não é um ser: é o ser do homem, quer dizer, o seu nada de ser. (...) O homem não pode ser ora livre, ora escravo; ele é inteiramente e sempre livre, ou não é.


Jean-Paul Sartre, em 'O Ser e o Nada'




Foto: Da terra. Ribeirão da Ilha. Florianópolis.

10 agosto, 2010

do escritor


Foto: Copiada da internet.
Não queremos ter vergonha de escrever e não sentimos a necessidade de falar para não dizer nada. De resto, ainda que o desejássemos, não o conseguiríamos: ninguém pode conseguir isso. Todos os escritos possuem um sentido, mesmo que esse sentido esteja muito afastado daquele que o autor tenha pensado dar-lhe. Para nós, com efeito, o escritor não é Vestal nem Ariel: está «metido no caso», faça o que fizer, marcado, comprometido, mesmo no seu mais profundo afastamento. Se, em certas épocas, utiliza a sua arte para forjar bugigangas de inanidade bem soante, até isso é significativo: é porque há uma crise das letras e, sem dúvida, da sociedade.



Jean-Paul Sartre, in `Situações II

14 julho, 2009

...se nos banhamos assim no futuro...

Tentai apreender a vossa consciência e sondai-a. Vereis que está vazia, só encontrareis nela o futuro. Nem sequer falo dos vossos projectos e expectativas: mas o próprio gesto que surpreendeis de passagem só tem sentido para vós se projectardes a sua realização final para fora dele, fora de vós, no ainda-não. Mesmo esta taça cujo fundo não se vê - que se poderia ver, que está no fim de um movimento que ainda não se fez -, esta folha branca cujo reverso está escondido (mas poderia virar-se a folha) e todos os objectos estáveis e sólidos que nos rodeiam ostentam as suas qualidades mais imediatas, mais densas, no futuro.

O homem não é de modo nenhum a soma do que tem, mas a totalidade do que não tem ainda, do que poderia ter. E, se nos banhamos assim no futuro, não ficará atenuada a brutalidade informe do presente? O acontecimento não nos assalta como um ladrão, visto que é, por natureza, um Tendo-sido-Futuro. E, para explicar o próprio passado, não será a primeira tarefa do historiador procurar o futuro?


Jean-Paul Sartre, in 'Situações I'
Foto: Porvir. Cacupé. Florianópolis.

10 julho, 2009

em nossas mãos


É verdade que as divisões brutais e suas consequências teóricas (apodrecimento da ideologia burguesa, interrupção provisória do marxismo) obrigam a nossa época a se fazer sem se conhecer, mas, de outro lado, ainda que soframos mais do que nunca suas pressões, não é verdade que a História nos apareça totalmente como uma força estranha. Ela se faz cada dia por nossas mãos diferente do que acreditamos fazê-la e, por um imprevisto movimento de retorno, nos faz diversos daquilo que acreditamos ser ou tornar-nos; e, entretanto, ela é menos opaca do que foi...


Jean-Paul Sartre - Questão de método

17 março, 2008

e, se nos banhamos assim no futuro

Tentai apreender a vossa consciência e sondai-a. Vereis que está vazia, só encontrareis nela o futuro. Nem sequer falo dos vossos projectos e expectativas: mas o próprio gesto que surpreendeis de passagem só tem sentido para vós se projectardes a sua realização final para fora dele, fora de vós, no ainda-não. Mesmo esta taça cujo fundo não se vê - que se poderia ver, que está no fim de um movimento que ainda não se fez -, esta folha branca cujo reverso está escondido (mas poderia virar-se a folha) e todos os objectos estáveis e sólidos que nos rodeiam ostentam as suas qualidades mais imediatas, mais densas, no futuro.

O homem não é de modo nenhum a soma do que tem, mas a totalidade do que não tem ainda, do que poderia ter. E, se nos banhamos assim no futuro, não ficará atenuada a brutalidade informe do presente? O acontecimento não nos assalta como um ladrão, visto que é, por natureza, um Tendo-sido-Futuro. E, para explicar o próprio passado, não será a primeira tarefa do historiador procurar o futuro?


Jean-Paul Sartre - Existimos em Função do Futuro - in 'Situações I'

08 julho, 2007

Nunca na minha vida dei ordens sem rir


Não sou um chefe, nem aspiro a sê-lo. Comandar e obedecer dão no mesmo. O mais autoritário comanda em nome de outro, de um parasita sagrado - seu pai -, e transmite as abstractas violências de que padece. Nunca na minha vida dei ordens sem rir, sem fazer rir; é que não estou roído pelo cancro do poder; não me ensinaram a obediência.


Jean-Paul Sartre- As Palavras

patiodotempo.blogspot.com

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"e o mundo é meu, o mundo é seu, de todo mundo..." Zeca Baleiro