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07 março, 2023

Sol poente

Poente. Campeche. Fevereiro de 2023.

Que bom que você gosta, ele disse,
já que talvez seja o último do tipo.
Não havia nada a dizer;
na verdade, parecia o fim de alguma coisa.
Era um momento solene.
Ficamos um tempo em silêncio, olhando juntos para ele.

Lá fora o sol se punha,
o tipo de simetria precisa
que sempre registrei.

Se pelo menos eu soubesse, ele disse,
o efeito das palavras.
Você está vendo como esta coisa ganhou peso e importância
desde que eu falei?

Eu podia ter feito isto há muito tempo, ele disse,
em vez de gastar meu tempo começando uma e outra vez.

2.

Meu professor tinha um pincel na mão
mas depois eu também tinha um pincel na mão -
os dois em pé juntos olhando para a tela
pelos cantos da qual
brotava uma turbulenta escuridão; no centro,
ostensivamente, o retrato de um cão.
O cão tinha uma certa qualidade forçada;
agora eu percebia. Nunca
fui muito boa com coisas vivas.
Com luminosidade e escuridão me viro bastante bem.
Eu era muito jovem. Diversas coisas haviam acontecido
mas nada havia acontecido
uma e outra vez, o que faz uma diferença.
Meu professor, sem ter dito uma só palavra, começou a se virar
para os outros alunos. Por mais que eu sentisse pena de mim
                                           [naquele momento,
sentia mais pena ainda do meu professor, que sempre usava
                                           [as mesmas roupas
e não tinha uma vida, pelo menos não uma vida aparente,
só um sentimento agudo do que estava vivo na tela.
Com a mão livre, toquei seu ombro.
Por que, perguntei, o senhor não fez nenhum comentário                                 

  [sobre a obra que está diante de nós?

Fui cego durante muitos anos, ele disse, embora tivesse um olho sutil e judicioso quando via,
qualidades que, acredito, estão fartamente evidenciadas na
                                   [minha própria obra.
É por isso que dou tarefas a vocês, ele disse,
e por isso sou tão rigoroso nas perguntas que faço.
Quanto a meu dilema atual: quando acho, ao ver o desespero
e a raiva de um aluno, que ele se tornou um artista,
nesse caso eu falo. Diga-me, continuou,
O que você acha do seu próprio trabalho?

Está faltando noite, respondi. Na noite posso ver minha
                                          [própria alma.
É também o que penso, ele disse.

3.

Sou contra
a simetria, ele disse. Segurava com as duas mãos
um pedaço desequilibrado de madeira que um dia
já fora bem grande, como um galho de árvore:
isso foi antes da segunda vida que teve na água,
depois da qual, embora houvesse menos dele
em termos de massa, havia maior
densidade espiritual. A madeira flutuante,
ele disse, confirma meu ponto de vista - é por isso que ela
                                                    [parece
inerentemente dramática. Para sublinhar sua opinião,
bateu na madeira. Com certa violência, parece,
porque um pedaço quebrou.
Movimento!, ele exclamou. Aprendam! Olhem essas pinturas,
ele disse, referindo-se às nossas. Eu trabalho com arte
há mais tempo do que vocês respiram
e mesmo assim minhas telas têm vida, se afogam
em vida - Nesse ponto, calou-se.
Eu estava ao lado do meu trabalho, que agora parecia rígido
                                                [e sem vida.
Hora do intervalo, ele disse.

Saí da sala, por um momento, para o ar da noite.
Era uma noite fria. A cidade ficava numa praia,
perto do local onde antes estava a mata.
Senti que não tinha futuro nenhum.
Havia tentado e fracassado.
Havia tomado meus fracassos por triunfos.
A expressão fumaça e espelhos entrou na minha cabeça.
E de repente o professor estava do meu lado,
fumando um cigarro. Fazia muitos anos que ele fumava,
a pele dele era cheia de rugas.
Você estava certa, ele disse, no modo
como instintivamente se recolheu.
Poucos fazem isso, como vai perceber.
O trabalho virá, disse. Os traços
vão emergir do pincel. A essa altura fez uma pausa
para fitar calmamente o mar no qual, agora,
todos os planetas se refletiam. A madeira flutuante|
é pura cena, disse; distrai as crianças.
Mesmo assim, disse, é bem bonito, eu acho,
como aquelas árvores deformadas que os chineses cultivam.
Bon-sai, é o nome. E me entregou
o pedaço de madeira flutuante que havia quebrado.
Comece pequeno, disse. E deu um tapinha no meu ombro.

4

Procurem pensar, disse o professor,
numa imagem da infância.
Colher, disse um garoto. Ah, disse o professor,
isso não é uma imagem. É sim,
disse o garoto. Veja, eu seguro a colher na mão
e no lado convexo aparece um cômodo
só que distorcido, e é preciso mais tempo para ver o centro
do que os dois lados. Sim, disse o professor, é o que acontece.
Mas no sentido mais amplo, não é: se você move a mão
mesmo uns centímetros, já não é isso. Você não estava lá, disse
                                                  [o garoto.
Não sabe como arrumávamos a mesa.
É verdade, disse o professor. Não sei nada
da sua infância. Mas se você adicionar sua mãe
ao mobiliário distorcido, terá uma imagem.
Ela será boa, perguntou o garoto, uma imagem forte?
Muito forte, disse o professor.
Muito forte e plena de presságios.

Louise Glück 

. . .

Poema do livro "Receitas de inverno da comunidade", da ganhadora do Nobel da Literatura de 2020, Louise Glück.

Ganhei o livro de meu bem, numa de suas vindas de Porto Alegre. Uma belíssima surpresa! Não tinha sequer ouvido falar dela. Cada poema deste livro é como chegar num lugar quente e acolhedor, numa noite muito fria... e não estamos sós... 
Nunca senti esta sensação ao ler poemas: a de fazer parte da humanidade, de lembrar de meu grupo: mãe, irmãs, professores, amigos de infância, amigos de juventude... 

Este livro tem a beleza de jóia bruta: rústica, natural, cujo brilho e a preciosidade vamos percebendo a medida que tocamos... Raro ler algo assim.


patiodotempo.blogspot.com

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"e o mundo é meu, o mundo é seu, de todo mundo..." Zeca Baleiro