26 outubro, 2009

Para a minha filha


Dai-me outra vida e estarei no Caffè Rafaella
a cantar. Ou estarei sentado a uma mesa,
simplesmente. Ou de pé, como um móvel no corredor,
caso essa vida seja menos generosa que a anterior.

Contudo, em parte porque nenhum século daqui em diante
conseguirá passar sem jazz nem cafeína, aguentarei esse desplante,
e pelas minhas rachas e poros, verniz e todo de pó coberto,
observarei, daqui a vinte anos, como a tua flor se terá aberto.

De um modo geral, lembra-te de que estou por ali. Ou melhor, que
um objecto inanimado pode ser o teu pai, sobretudo se
os objectos forem mais velhos do que tu, ou maiores. Não
os percas de vista, pois, sem dúvida, te julgarão.

Seja como for, ama essas coisas, haja ou não encontro.
Além disso, pode ser que ainda te lembres duma silhueta, dum contorno,
ao passo que eu até isso perderei, juntamente com a restante bagagem.
Daí estes versos, algo toscos, na nossa comum linguagem.


Joseph Brodsky

Foto: Florescências. Gramado. RS.

Um comentário:

Lev Ladez disse...

Pois é... cheguei aqui.
Amei ler teus textos e tuas escolhas.

Infinito.

Quanto aos versos do "meu sobrinho que cresce" pude senti-lo com uma grande intimidade. É incrível este menino, ele deixa muitas lembranças, iluminado e, com certeza, deve te trazer muitas saudades.

Vou deixar um poema que re-li ontem e que está aqui, ao meu lado, na minha mesa, insistindo para que eu o transcreva:

PREPARATIVOS DE VIAGEM

A louca agitação das vésperas de partida!
Com a algazarra das crianças atrapalhando tudo
E a gente esquecendo o que devia trazer,
Trazendo coisas que deviam ficar...
Mas é que as coisas também querem partir,
As coisas também querem chegar
A qualquer parte! - desde que não seja
Este eterno mesmo lugar...
E em vão o Pai procura assumir o comando:
Mas acabou-se a autoridade...
Só existe no mundo esta grande novidade:
VIAJAR!

Mario Quintana

(adoro os marios :)
os poetas, é claro)

patiodotempo.blogspot.com

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"e o mundo é meu, o mundo é seu, de todo mundo..." Zeca Baleiro