não é o corrente cólofon da vida
trata-se antes de um legado frágil
vigente apenas até ao final de um dia
digamos pois que lego para quinta-feira
as minhas inquietações de terça
mudadas apenas um pouco pelos sonhos
e essa tristeza que é inevitável
lego uma nuvem de mosquitos
e um computador que não tem pilhas
e até a minha solidão com a esperançade que os meus legatários não a admitam
lego à quinta-feira quatro remorsos
a chuva que contemplo e não me molha
e o feto ritual que me intimida
com a velha elegância das suas folhas
lego o ranger azul das minhas dobradiças
e uma talhada da minha sombra leve
não toda porque um homem sem a sua sombraperde o respeito da boa gente
lego o pescoço que lavei como
para uma quinta-feira de forca ou guilhotina
e uma vontade que ignoro se é recato
ou estupidez malsã ou alegria
lego os subúrbios de uma ideia
um tríptico de espelhos que me fere
o mar ali ao alcance da mãoa hera que se agita nas paredes
e só agora penso que na minha árvore
nas minhas brumas sem rosto e no meu vinho
ficam-me por legar tantas histórias
que alguma se me esconde no esquecimento
por isso e por precaução e por causa das dúvidas
e para não afligir os meus herdeiros
deixo-as para outro testamento
digamos que para o testamento de quinta-feira
Mario Benedetti
(Tradução de Anthero Monteiro)
Foto: Dias de sol e frio. Beira-mar. Florianópolis on the road.
Nenhum comentário:
Postar um comentário